Por: Suzi Huff Theodoro
Obras artísticas, de diversas modalidades, têm retratado o uso do vinho em diferentes contextos e situações ao longo da história da humanidade. Desde as civilizações greco-romanas, passando pelas egípcias, persas e chinesas, até os tempos contemporâneos, cenas de personagens ou comunidades brindando à vida e às conquistas se repetem e traduzem a ideia de alegria, induzida pela leveza do álcool.
Nesse contexto, tomar vinho converteu-se em um dos prazeres da vida. As preferências são tão variadas quanto a oferta dos diversos sabores e texturas das muitas centenas de tipos de vinhos. Origens francesas, italianas, espanholas, portuguesas, sul-africanas, chilenas, argentinas e, porque não, brasileiras, disputam o paladar e a preferência dos apreciadores da bebida, que ora evoca felicidade e prazer, ora meditação e reflexão. Muito provavelmente, os franceses souberam, ao longo do tempo, capturar mais apreciadores entre os enófilos, porque foram capazes de construir uma narrativa que vincula bom gosto e sofisticação a uma gastronomia refinada, sempre regada ao vinho. Ao criarem o termo terroir buscaram vincular as especificidades relativas à geografia e ao clima de diferentes regiões do país.
Mais recentemente, a indicação geográfica (IG), que associa qualidade e origem territorial, tem contribuído para agregar valor a determinadas marcas e, eventualmente, proteger regiões produtoras. Na pegada da origem territorial, ainda que não seja incomum, pouca ênfase tem sido dada à procedência geológica – predicado que atrela tipos de rochas geradoras às áreas produtoras – vinculando-a com a qualidade dos diversos tipos de vinhos, suas texturas e peculiaridades. Mas há exemplos. Em Portugal, na região alentejana, o vinho Terras de Xisto anuncia sua origem explicitando que as videiras se desenvolvem sobre rochas metamórficas – os xistos – consideradas fontes de nutrientes como cálcio, magnésio e, eventualmente, potássio, o que resulta no sabor peculiar desse vinho.
Igualmente, na França, há alguns casos em que a indicação geológica desperta a curiosidade e a preferência daqueles que têm “faro” ou fascínio pelas ciências da terra. Há um ano tive a oportunidade de celebrar o aniversário de um grande amigo com dois exemplares de vinhos que refletem sua vinculação com distintos tipos de rochas. Para além da confraternização, a origem dos vinhos ocupou um bom tempo de prosa, de impressões e conjecturas geológicas. Um dos vinhos – Clisson – informa, em seu rótulo, que foi produzido sobre rochas graníticas e que combina uma acidez delicada com um sabor frutado. Já o outro, Gorges produzido sobre solos derivados de gabros, expõe em sua etiqueta que se trata de um vinho de caráter, que associa harmoniosamente sabores defumados e de frutas secas. É mais encorpado.
Talvez essas informações possam passar desapercebidas aos apreciadores de vinhos, habituados às variações das diferentes castas de uva. Mas para os profissionais das geociências essas diferenças traduzem a materialização de uma paixão permanente – as rochas – que em suas distintas formas, tipos e gêneses, revelam sua origem para aqueles que possuem afinidade e conhecimento, e, porque não o paladar, para captar os segredos da terra em suas múltiplas manifestações geopedológicas. Granitos, gabros, xistos são rochas tão distintas em sua gênese e conteúdo mineralógico que só esta informação bastaria para longas discussões acerca do porquê estes vinhos podem ser perfeitamente distinguíveis. Ainda que o clima, a variedade das uvas, o manejo e o processo produtivo interfiram nas características dos vinhos, são as rochas que lhes emprestam o sabor e o seu conteúdo nutricional.
Os granitos, formados em grandes profundidades, refletem a composição química mais comum da própria crosta terrestre. São rochas mais claras, com teores mais significativos de potássio e sílica e, portanto, são mais ácidas. Assim como os granitos, os gabros, também são rochas ígneas, porém, resultam da fusão parcial do manto terrestre. São, assim, mais alcalinas e refletem um resfriamento lento de magmas ricos em cálcio, magnésio e conteúdo de sílica mais reduzido. Já os xistos representam rochas ricas em minerais placóides (micas) derivadas de processos metamórficos que deformam rochas pretéritas em condições de pressão e temperatura intermediárias.
Ao longo de um ano, após o aniversário e de tanto especular sobre essas peculiaridades, eu diria inebriantes, um dia sonhei que presenciava uma conversa entre Dionísio, deus da mitologia grega – ou Baco, seu equivalente na mitologia romana – é Ceres ou Deméter, deusas romana e grega, respectivamente. Enquanto Baco gabava-se de representar uma divindade que possui poderes sobre a natureza e de suas habilidades para despertar a felicidade proporcionada pelo vinho, Ceres, que representa o poder produtivo do solo, da agricultura e da fertilidade, admirava-se do colega, mas, também, confidenciava como havia concentrado muito do seu poder nos solos. De forma eloquente e cativante, revelava sobre as particularidades e os potenciais dos diferentes tipos de solos, distribuídos por toda a Terra e da missão que possuíam de alimentar e sustentar todas as espécies vivas, desde a mais minúscula até a mais robustas. Ela advertia, porém, sobre as fragilidades deste, o qual é mais delgada das esferas que compõem o planeta Terra (pedosfera).
Ao longo da conversa trocavam ideias sobre a felicidade e como seria possível mostrar aos humanos um caminho para alcançá-la. Baco, inebriado e já meio ébrio, mas ainda ciente do seu poder, encantava-se com a força e com as habilidades e domínios de Ceres. Mas vaidoso, gabava-se das festas memoráveis, onde o vinho, seu mais primoroso trunfo, despertava o melhor nos mortais. Já Ceres lhe dizia que quando se encontrava em estado de felicidade, tinha o poder de fazer a terra resplandecer e vestir-se de flores, frutos e alimentos. Porém, nos tempos de fúria era capaz de provocar secas extremas, tempestades e fome em meio aos mesmos mortais.
Baco, hábil conhecedor da natureza, estava curioso sobre essas peculiaridades e alongava a conversa para melhor entender como proporcionar as melhores condições que resultassem em vinhos mais encorpados, frutados ou aromáticos. Ceres lhe explicou, então, que os solos são filhos das rochas e que eles podem guardar essa ancestralidade e preservar parte dos atributos nutricionais de suas geradoras. A diversidade das rochas resultaria, assim, em uma espécie de assinatura genética dos diferentes alimentos, que guardariam essas afinidades em seus DNAs. Mas, contou Ceres, outros fatores – como o clima e as relações com seres microscópicos que habitam o solo – podem mudar as condições iniciais.
Baco, inteligente que era, perguntou a Ceres: como poderia espalhar vinhedos pelos quatro cantos da Terra, caso as restrições naturais ficassem comprometidas? Conhecedor da natureza, ele sabia que em muitas situações a aptidão dos solos poderia ser comprometida pelos rigores do clima. Nestes casos, como ele poderia induzir os humanos a entender de que forma poderiam facilitar o cultivo das videiras e de outras plantas que desejassem produzir?
Foi neste momento que Ceres lhe revelou o segredo do rejuvenescimento dos solos. Como tudo na vida, exceto para as divindades, o transcorrer do tempo cobra o preço do envelhecimento. Também os solos envelhecem e perdem suas condições pretéritas. Tornam-se menos férteis e precisam de aportes ou de práticas de manejo para sustentar as matas, as lavouras e os campos. Os humanos deram o nome de intemperismo a esse processo. Ele pode ser natural (ocorrendo ao longo de centenas de milhares de anos), mas pode ser acelerado pelo mau uso do solo pelos próprios humanos, que na cobiça de obter mais alimento e lucro o submetem até a exaustão. Baco ficou apreensivo e já vislumbrava castigos terríveis que aplicaria aos gananciosos humanos que excedessem os limites da natureza.
Porém, Ceres o tranquilizou e revelou que havia uma forma simples e segura de reverter este processo e até ampliar os níveis de fertilidade. Tratava-se da remineralização dos solos, que se dá por meio do acréscimo de determinados tipos de rochas, as quais estão disponíveis em toda parte, e quando moídas teriam a função de devolver aos solos os constituintes já perdidos pelo intemperismo ou mau uso. Essa prática, denominada rochagem, nada mais é do que uma imitação do que a natureza tem feito ao longo do tempo. Desgasta em um lugar e concentra em outro. Ela pode ser entendida de uma forma fácil por todos os mortais, uma vez que representa a fertilização da terra pela própria terra. Seria uma espécie de intemperismo reverso, quando as matriarcas (rochas) emprestam seus próprios nutrientes aos filhos (solos) para que eles voltem a ser produtivos. Os mais variados tipos de rochas podem ser utilizados para este fim. Granitos, basaltos, gabros, xistos, etc. se prestam a essa finalidade. Ceres advertia, no entanto, que era preciso entender que não só as rochas facilitam a mudança da fertilidade, mas que a própria humanidade deveria compreender que era preciso cuidar dos solos, porque a vida do planeta está sustentada nesta que é a mais delgada e frágil camada da nossa casa comum – o planeta Terra.
Surpreendido e feliz com as possibilidades e os segredos revelados por Ceres, Baco sacou mais uma garrafa de seu melhor vinho e pôs-se a vislumbrar um futuro onde não só o vinho, mas todos os alimentos poderiam ser produzidos de forma segura, promovendo uma nova aliança entre os povos em busca das melhores práticas de produção, que não sobrecarregassem ou agredissem o solo, bem como as demais esferas que compõem o planeta, particularmente a atmosfera, que o protege. A rochagem é a solução.
Com o som de tim-tim entre as duas divindades fui despertada do sonho. Acordei feliz!